Entenda quais são as dificuldades que multimarcas e e-commerces enfrentam hoje no Brasil – e o que futuro reserva para o varejo
VÍVIAN SOTOCÓRNO/ Vogue
Fundada na década de 20 e uma das multimarcas mais famosas do mundo, a Barneys deu o que falar nesta semana ao entrar com um pedido de proteção contra falência na corte americana. O processo permite que a Barneys permaneça aberta enquanto elabora um plano para reverter os negócios e pagar suas dívidas (entre os credores estão diversas marcas, como Celine e Prada). De cara, a multimarcas fechará 15 de suas lojas, mantendo abertas apenas sete, incluindo o endereço da avenida Madison, em Nova York.
São três os principais motivos que levaram a tal cenário financeiro: o aumento exponencial (72%) do aluguel da loja da avenida Madison, a principal para a Barneys; o crescimento da quantidade de concorrentes (além dos e-commerces, hoje também existem marcas que vendem diretamente para o consumidor); e um crescimento mais lento do que o esperado nas vendas do e-commerce da rede.
O caso Barneys não está isolado e reflete na verdade um colapso que vem alastrando o varejo – incluindo não apenas lojas físicas mas também os e-commerces. Enquanto a nova geração vem comprando com mais propósito e investindo em formatos alternativos como o second hand (caso do brasileiro Enjoei) e o aluguel, mesmo os clientes de longa data das lojas têm demonstrado mudanças no comportamento de consumo. “As pessoas estão preferindo cada vez mais gastar com lifestyle (viagens, restaurantes, passeios) do que com moda”, pondera Juliana Santos, à frente da multimarcas Dona Santa, em Recife. “Quem trabalha como moda precisa estar muito mais atento à mudança de comportamento ao seu redor do que aos desfiles de fato.”
O comportamento extremamente compulsivo e descontrolado em relação às compras vem ficando para trás – comprar simplesmente por comprar é um conceito cada vez mais ultrapassado. Hoje se pensa melhor se aquela peça faz sentido dentro do guarda-roupa, se será mesmo usada, de onde ela vem. As compras diminuíram em volume.
“E o estilo de consumo também mudou: os clientes não querem mais ostentação, e sim propósito. Faz toda a diferença para nós apostar em marcas que privilegiam processos responsáveis, que sejam artesanais, sustentáveis ou quem tenham outro diferencial”, diz Ana Isabel de Carvalho Pinto, à frente do e-commerce Shop2gether.
Outra saída das lojas é agregar e integrar cada vez mais experiências. Não à toa, o centro de compras nova-iorquino mais comentado do ano – o Hudson Yards, inaugurado em março – mistura marcas desejo, diversos restaurantes e um cenário altamente Instagramável. “Já tínhamos um restaurante na Dona Santa e agora abrimos também um cabeleireiro, temos shop´n´shop de duas joalherias e uma da Tânia Bulhões. É preciso agregar. Além disso, apostamos em pop-ups temáticas, como a que foi armada para o Dia dos Pais”, conta Juliana, que também vem diversificando o mix de marcas de moda e investindo em jovens talentos e em grifes mais acessíveis. “Busco conhecer novas marcas a cada temporada. Em paralelo, os itens de luxo ganham seleção cada vez mais focada e assertiva.”
Em um mundo tão conectado, onde tudo está ao alcance de um clique, é necessário ir além, oferecer algo que seu cliente não possa encontrar em outro lugar. “Quando se pensa em um mix de importados, não adianta apenas trazer marcas de Paris ou Milão, tem que haver uma busca incessante por novidades que surpreendam o consumidor”, diz Erika dos Mares Guia, da Mares, expert em descobrir e garimpar marcas menores e desconhecidas mundo afora – Erika é rata de lojinhas locais pelos quatro cantos do globo. “E não se trata apenas da curadoria, mas também da forma como aquele produto é oferecido. A experiência na loja precisa ser diferente e especial. O espaço precisa ser repensado. A CJMares, por exemplo, [unidade da Mares em parceria com o Shopping Cidade Jardim que será inaugurada ainda este semestre] será um espaço onde é possível comprar, comer, se divertir, levar seu filho. Uma experiência que vai além da compra e que facilita a vida da mulher contemporânea, que dispõe de bem menos tempo para resolver o que precisa.”
“E também é preciso estar atento para as reais necessidades de seu consumidor. Se nos Estados Unidos mais da metade da população veste acima do número 14 americano [mais ou menos o 44 brasileiro], não adianta as grades das lojas não refletirem isso. A grade de tamanhos da Mares de SP é diferente da de BH, por exemplo. É preciso escutar o que o cliente quer, quanto está disposto a pagar, como quer ser atendido – não podemos esquecer que é ele o protagonista.”
SEMPRE EM LIQUIDAÇÃO
Outra reclamação em comum entre as lojas é o ritmo das liquidações – que começam cada vez mais cedo e duram cada vez mais tempo. Nesta temporada, por exemplo, o sale de inverno se iniciou ainda em junho, sendo que o frio de fato só chegou à maior parte do País em julho – ou seja, praticamente nenhum casaco foi vendido a preço cheio no Brasil.
“Se antes eu podia começar a liquidar quando funcionasse melhor para a Dona Santa, hoje iniciamos as promoções cada vez mais cedo – assim que os e-commerces começam preciso começar também, se não meus clientes irão comprar em outros lugares”, diz Juliana Santos. Ao que Amanda completa: “fora que, quando a coleção nova é lançada, no início de agosto, as marcas dão preferência a abastecerem primeiros as lojas próprias – e acabamos recebendo as primeiras peças apenas no fim do mês. O que resulta em praticamente três meses de sales ininterruptos: junho, julho e agosto. Esse calendário de descontos tão frequentes não é saudável.”
Um reflexo do consumo exagerado de antigamente, não estaria tal ritmo de liquidações também ultrapassado? Se a ideia é justamente consumir com mais propósito, entender e valorizar de onde aquela peça vem e como foi feita, não faria mais sentido adquiri-la a um preço justo? Até porque, se menos produtos acabassem indo para a liquidação ao fim de uma coleção, o próprio preço cheio praticado poderia ser mais baixo, com menos margem de lucro.
Um dos segredos para “sobreviver” aos sales é o lançamento de marcas próprias das lojas. O Gallerist, por exemplo, possui três: Framed, Allmost Vintage e a infantil Edamami. “Criamos as marcas para ter mais controle do calendário. Assim podemos ajustar os lançamentos para o período que as outras marcas do nosso mix estão em sale. A ideia no início era inclusive que a Framed não tivesse estações definidas e portanto nunca precisasse entrar em liquidação, mas acabamos cedendo à pressão dos clientes e inclusive dos próprios vendedores das nossas lojas físicas”, diz Amanda.
Coleções-cápsulas e colaborações também ajudam a driblar. “Tenho clientes que só compram no lançamento, outros que só compram na liquidação e também os que compram em ambos os momentos. Como para mim o mais interessante de trabalhar são os que consomem no lançamento, o segredo é ir distribuindo diversos pequenos lançamentos ao longo do mês”, diz Ana Isabel. “Por exemplo: quando a liquidação de inverno começa, em junho, aproveito para lançar uma nova cápsula de beachwear para quem vai viajar para fora.”
Feita na Itália, a marca de sapatos Marion Parke é uma das descobertas que Erika dos Mares trouxe para a CJ Mares.
O FUTURO É MULTIPLATAFORMA
Longe de ter como concorrentes apenas os e-commerces, as multimarcas físicas hoje também competem com eventos itinerantes (a partir dos quais as marcas podem seguir trabalhando tais clientes pelo WhatsApp) e a venda via Instagram. Ao ser lançada hoje, uma jovem grife não precisa mais de uma loja – e pode alcançar clientes mais facilmente (e de maneira mais barata) pelas redes sociais. Com custos baixos, atraem pelos preços competitivos – tornando a competição ainda mais difícil para as multimarcas físicas, que têm altos custos fixos.
“Manter uma loja física é caro, mas tem-se uma imagem equivocada que operar no ambiente on-line seja mais barato. O próprio custo de aquisição do cliente on-line pode ser mais caro do que em um ponto físico. Fora o alto gasto com tecnologia, que muitas vezes precisa ser desenvolvida aqui. É difícil trazer uma tecnologia de fora que entenda o sistema tributário brasileiro. Nossa alta burocracia acaba impedindo a inovação”, diz Amanda.
O segredo vem sendo cada vez mais operar em várias plataformas, assim atingindo diferentes clientes. No Brasil, por exemplo, diversas multimarcas estabelecidas vêm lançando e-commerces próprios, como é o caso da Dona Santa. Até o Shopping Cidade Jardim lançou uma plataforma online no ano passado, o primeiro shopping de luxo da América Latina a oferecer tal serviço.
“Começamos como e-commerce, lançamos marcas próprias, inauguramos lojas físicas, temos market places… É preciso se reinventar o tempo todo”, completa Amanda. “É necessário estar em várias plataformas e entender quais são os clientes que estão em cada uma delas (vendemos Framed online também através da Farfetch, por exemplo. Pode parecer uma competição com o nosso próprio site, mas não – alcançamos ainda mais clientes, pois são consumidores diferentes). Não consigo enxergar um futuro em um único canal.”
Fonte: Vogue