FENINJER+

O que a história nos ensina sobre o mundo pós-pandemia

O que a história nos ensina sobre o mundo pós-pandemia

O que a história nos ensina sobre o mundo pós-pandemia

Outras emergências de saúde deixaram legado de ‘novos’ hábitos; população já sente que, das alterações na rotina, muitas vieram para ficar

Por Alex Bessas

Historicamente, grandes emergências de saúde, além de fatores biológicos, afetam a estrutura das sociedades e tencionam mudanças, individual e coletivamente. A Grande Praga da Manchúria, em 1911, por exemplo, é associada ao surgimento de um novo hábito na China: o uso de máscaras em espaços públicos. Já a Gripe Espanhola, de 1918, deu impulso à centralização da agenda de saúde pública no Brasil.

Com a pandemia da Covid-19, a história não é diferente. Mesmo sendo difícil dizer o que será do planeta depois que tudo passar, já é possível perceber como um novo horizonte de protocolos se infiltra nos lares brasileiros.

Um levantamento realizado pelo Instituto Valor, em parceria com KriteriON Pesquisas, divulgado no final de abril, demonstrou que, para enfrentar a disseminação do vírus, 85% das pessoas garantem ter adotado novas práticas de higiene em casa ou no trabalho. Mas transformações de outra ordem, como relacionadas à consolidação de novas formas de sociabilidade e de trabalho, também podem ser observadas. Vicissitudes tão profundas que nem a Língua Portuguesa saiu ilesa.

Treinando um robô que responde a clientes de uma rede de hotéis por meio de redes sociais, Franciele Oliveira, 25, incorporou ao sistema uma nova etiqueta social: “Resolvi adotar o ‘se cuida, viu?’ ao finalizar as conversas, e muita gente agradece a gentileza”.

Ela acredita que o gesto deve permanecer. “Talvez o mundo não volte a ser como antes, e, por isso, o cuidado, com nós mesmos e com os outros, tende a ser mais vezes demonstrado”, sustenta. De fato, a etiqueta social já é outra, e, enquanto os apertos de mão praticamente caíram em desuso, o “cuide-se” e suas variantes tornaram-se mais frequentes.

Home Office

Diversas outras práticas do dia a dia também se reconfiguraram. O uso de máscaras é, por ora, obrigatório em diversas cidades, incluindo Belo Horizonte. Passada a crise mais aguda, quando o item for opcional, Franciele não descarta adotar o equipamento em algumas situações.

O teletrabalho é outro elemento novo, com o qual está aprendendo a lidar. “Ao mesmo tempo que estou me adequando ao home office, sinto saudade de fazer coisas simples, até banais – como ir ao supermercado sem medo algum de me contaminar”, sinaliza.

Essa virtualização foi razão de espanto para o publicitário Fábio Pires em duas ocasiões. “Durante a pandemia, fui desligado de uma empresa, tudo remotamente. Semanas depois, fui contratado por outra, passando por todo processo sem que houvesse encontros presenciais”, comenta.

Lavar as mãos vira rotina

A publicitária Vanessa del Negri observa mudanças de prática nos espaços em que transita. “Vejo que todo mundo, aqui no prédio, deixa os sapatos para fora da casa. Muita gente está mudando alguma coisinha”, cita, comentando que, pessoalmente, o ato de lavar as mãos sempre que chega em casa é o principal novo hábito adotado.

Uma transição comportamental que não está relacionada à higiene diz respeito às chamadas de vídeo, mais presentes. Curiosamente, é no período de isolamento social que Vanessa reviu amigas com quem há tempos não falava. “Fazia uns quatro anos que não conversava direito e não via uma amiga que mora nos Estados Unidos. Um dia, a chamei, e ficamos mais de quatro horas na chamada”, lembra.

O comunicólogo Alexandre Rodrigues, porém, suspeita que a maior parte dos novos protocolos tende a ser abandonada. “Eu conheço pessoas que estão afrouxando as medidas, que não estão mais lavando alimentos quando chegam em casa – algo que faziam no começo dessa crise”, observa. Para ele, só devem perpetuar aqueles hábitos mais simples, como lavar as mãos e o uso do álcool em gel – práticas que Rodrigues reforçou em sua rotina.

Vocabulário da ciência é incorporado ao léxico popular

Um termo científico, a Covid-19, acrônimo inglês para “doença do coronavírus 2019”, já é falado com desenvoltura. Mais uma das diversas expressões novas que vão se incorporando ao léxico – como “isolamento” e “distanciamento social” e “achatar a curva”. Há ainda um conjunto de estrangeirismos cada vez mais presentes – as lives e o temido lockdown são exemplos.

A verdade é que nem a língua portuguesa está ilesa ao novo coronavírus. O “testou positivo” e o “testou negativo”, que, até então, não existiam entre os falantes lusófonos, causaram algum incômodo entre os mais puritanos e tradicionalistas, mas, rapidamente, foram incorporados ao português. Os termos são traduções diretas do inglês.

“Esse verbo é transitivo na língua deles”, explica o professor de língua portuguesa professor Pasquale Cipro Neto, completando que “não dá para dizer que é errado, porque o uso legitima a expressão”.

Emergências de saúde impulsionaram mudanças coletivas e estruturais

Quando chegou ao Brasil, causando destruição e morte em cidades como a então capital nacional, o Rio de Janeiro, a gripe espanhola, impulsionou uma profunda transformação no entendimento da saúde pública no país.

A pandemia do vírus influenza, que infectou cerca de 500 milhões de pessoas em todo o mundo entre janeiro de 1918 a dezembro de 1920, “está dentro de um contexto que contribui para o início de um processo de centralização da agenda de saúde pública”, explica a historiadora Anny Torres. Não é pouco, afinal, a Primeira República (1889-1930) é marcada justamente por um processo de descentralização na gestão da instrução pública.

Outras experiências, como o surto da gripe H1N1, em 2009, também demarcam mudanças. “Foi quando começamos a ter a difusão do consumo de álcool em gel, sendo mais habitual em restaurantes, por exemplo. Um hábito que começa a ser incorporado para facilitar e contribuir para a higiene nesse período”, observa Anny, que se debruçou sobre como Belo Horizonte lidou com a gripe espanhola em sua tese de doutorado.

A historiadora, por fim, liga o uso comum de máscaras a uma outra epidemia, que varreu a China em 1911. Ela sinaliza que a Grande Praga da Manchúria, como ficou conhecida a crise que eclodiu no nordeste do país asiático e fez mais de 60 mil vítimas, pode ter sido fundamental para que o item fosse incorporado ao dia a dia dos chineses.

Por outro lado, voltando a 1918, Anny lembra: “Uma das recomendações é que a gente devia evitar os cumprimentos com mão estendida, que aqueles eram hábitos grosseiros, que o ideal seria apenas um aceno”. Mais de 100 anos depois, “voltamos a falar em repensar essa prática. O problema é que não vamos repensar hábitos só pela questão da higiene. Há outros elementos – sociais, históricos, culturais e até religiosos – que explicam porque alguns comportamentos vão, sim, se manter”, elabora.

À luz da história, Anny acredita que a pandemia possa provocar mudanças de hábitos ou mesmo reorientar a agenda da saúde e da ciência. Entretanto, acredita que diversas práticas, mesmo que suspensas por ora, devem retornar com brevidade.

Mudança versus permanência

Análise similar faz Cláudio Paixão Anastácio de Paula, doutor em psicologia social e professor da Escola de Ciência da Informação (ECI). “É justamente pelo medo e pelo receio de se contaminarem e, assim, levarem a doença a seu núcleo familiar – e estou falando de pessoas razoáveis -, que vão inserindo hábitos antes inexistentes”, avalia. Todavia, à medida que a apreensão fôr se esgarçando, “a tendência é que as pessoas se soltem mais”.

“Provavelmente, vamos chegar a um caminho do meio”, avalia. “É possível que haja uma acomodação, que alguma coisa seja flexibilizada, mas que venha a ser adotada”, indica, citando como exemplos o uso de cinto de segurança, que tornou-se praxe, mas apenas nos bancos da frente, e o uso de preservativos – “a partir do momento em que a Aids foi vista mais como uma doença crônica para as pessoas que são soropositivas, e já não como um bicho papão, vemos um percentual maior de pessoas se descuidando”, situa.

“Não sou esperançoso de mudanças radicais. Mas, com certeza, em termos de mudanças relacionadas ao teletrabalho, a teleaprendizagem, teremos transformações”, aposta Anastácio de Paula. No campo da saúde, o psicólogo acredita que deve haver uma diminuição das tentativas de desmobilização o Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, pontua que, em alguns países, devem eclodir programas de renda básica universal e a formatação de programas públicos de saúde. Ele não duvida, por fim, que haja um crescimento do prestígio e da credibilidade da ciência e das universidades.

O psicólogo não nutre grande expectativa que vá acontecer uma grande transformação que afete o principal: a consciência social. “Não acredito que a gente vá aprender a pensar além do próprio ‘eu’, que vamos entender a sociedade como organismo que depende de todos”, avalia.

Pandemias afetam a sociedade a longo prazo

Para além das mudanças mais explícitas e evidentes, as emergências de saúde têm também reflexos políticos, podem impulsionar movimentos filosóficos e artísticos e provocar rachaduras nos costumes.

“As grandes pandemias, como a peste bubônica (que aterrorizou a Europa no século XIV), mataram uma quantidade absurda de pessoas na Antiguidade. Há um impacto terrível na sociedade, produzindo grande desgraça, grande carestia e um maior empobrecimento das pessoas, havendo um desequilíbrio social maior”, sinaliza Anastácio de Paula.

Por outro lado, diz, a doença pode ter, em meio a outros diversos e difusos elementos, conduzido a uma maior valorização da vida. “As pessoas começam a pensar diferente. Há uma mudança de perspectiva no mundo, uma tentativa psicológica de a sociedade se reorganizar e começam a surgir movimentos de valorização do indivíduo. Essa ideia, que começa a se sedimentar, vai desaguar na emergência do Renascimento, lançando as bases do Iluminismo”, pontua. Ainda assim, no entanto, as estruturas sociais de então são mantidas, pondera.

A gripe espanhola e o nazismo na Alemanha

No caso da gripe espanhola, que sucedeu a Primeira Guerra Mundial, “mais uma vez esse movimento de compensação”, avalia o psicólogo. “Ao se recuperar de toda aquela angústia, do medo, da sensação de que a vida é breve, uma resposta é a valorização de experiências novas, uma crítica aos costumes vigentes até então”, observa.

Já um recente alerta do Federal Reserve (Banco Central dos Estados Unidos) relaciona a gripe espanhola também ao advento do nazismo. De acordo com o estudo, cidades com menos gastos sociais e onde ocorreram mais mortes naquele 1918 registraram mais votos em candidatos de extrema direita.

Para os pesquisadores, a pandemia teria moldado a sociedade alemã de então. O relatório também lembra que a economia global pode enfrentar a pior recessão desde era da Grande Depressão, inaugurada pela quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, quando, do outro lado do Atlântico, os nazistas chegaram ao poder.

(Com agências)

Fonte: O Tempo

Compartilhar
plugins premium WordPress
Rolar para cima