FENINJER+

Por que joias fazem parte da luta do povo negro por cidadania no Brasil?

Por que joias fazem parte da luta do povo negro por cidadania no Brasil?

Por que joias fazem parte da luta do povo negro por cidadania no Brasil?

As joias já simbolizaram os esforços de escravizadas, libertas e livres em suas lutas pela liberdade; hoje, para além de símbolo de poder, também representa vitória em um país ainda racista

Por Itan Cruz*

Os olhares atentos e curiosos de diversos estrangeiros que aportaram em Salvador, ao longo do século 19, demonstram como as joias compuseram a imagem de muitas africanas e afrodescendentes na Bahia. Em 1802, o comerciante inglês, Thomas Lindley, afirmou que as mulheres negras dessa província enfeitavam-se “ao pescoço com cadeias de ouro, que ficam pendentes. Têm elas geralmente de uma a três jardas de comprimento e são de três ou quatro voltas, contendo, dependurados, um crucifixo (ou Agnus Dei), um santo ou dois escapulários quadrados e de ouro, com querubins, etc., entalhados ou em relevo, e que se abrem como se fossem medalhões”.

Neste mês de setembro, a Coluna Presença Histórica da Uol debaterá sobre os diversos aspectos da cidadania. Este texto analisa a atuação daquelas que historicamente mais estiveram distantes da condição de cidadãs no Brasil: as mulheres negras. As joias já simbolizaram os esforços de escravizadas, libertas e livres em suas lutas pela liberdade, espaço social mais próximo da cidadania que poderiam conquistar, apesar de muitas precariedades. Uma pessoa cidadã é, sobretudo, um indivíduo munido de direitos, qualificação que a Constituição imperial de 1824 reservou somente aos homens livres e libertos (ainda que parcialmente), desde que nascidos no Brasil.

Baiana. Anônimo, s. d. Óleo sobre tela, 95,5 x 76,5 cm Museu Paulista USP, São Paulo.Imagem: Reprodução

Em meados daquele mesmo século 19, o vice-cônsul britânico, James Wetherel, registrou que viu mulheres “pretas” com “os braços cobertos por pulseiras de coral e ouro, contas etc., o pescoço carregado com correntes e as mãos com anéis”. Anotou ainda, sobre uma, em especial, que usava “seu traje de feriado, visitando os amigos, com as mãos cobertas de anéis, e o pescoço e os pulsos carregados de correntes de ouro maciço”. Eram o que passaram a ser conhecidas como “jóias de crioulas”, em referência às afrodescendentes nascidas no Brasil e que, aparentemente, eram as que mais detinham tais ornamentos.

Esses relatos demonstram parte do que a historiadora Kátia Mattoso denominou de “a opulência da Bahia”, na medida em que compreendeu a importância das aparências nas relações e estratégias sociais de pessoas brancas, negras – escravizadas, livres, libertas, crioulas ou africanas, naquele pedaço do Império. No caso de homens e mulheres escravizados, negociações possibilitaram a reserva de algum dia da semana – além dos “dias santos” – a fim de que pudessem trabalhar para si, o que favoreceu a acumulação do “pecúlio”, isto é, a soma de algum dinheiro para a compra da alforria. Não era incomum que escravizados fossem luxuosamente vestidos pelos seus senhores para demonstrar o poder econômico das famílias proprietárias. No caso de pessoas negras libertas e livres, o zelo pela autoimagem funcionava como uma espécie de salvo-conduto, para que não fossem confundidas como cativas – acontecimento corriqueiro nas práticas policiais. Não bastava serem libertas ou livres, as pessoas tinham que se assemelharem a tais. Por isso, com muito afinco, várias mulheres negras procuraram adquirir joias através das quais pudessem ser bem-vistas.

A liberdade como caminho para a cidadania

Mas não era apenas o caso da tentativa de assegurar certo exercício da liberdade – condição mais próxima que poderiam chegar da cidadania, já que mulheres não eram consideradas cidadãs, tampouco as negras. Além disso, como notado por Lindley, os adornos carregavam significados devocionais e místicos. Uma forma realçada de expressar suas crenças. A compra de joias também significava uma estratégia inteligente no investimento do dinheiro, já que as peças obedeciam a uma outra lógica econômica, menos vulnerável às instabilidades das moedas nacionais. Ademais, constituíam-se como objetos valiosos, relativamente fáceis de se desfazer para reunir quantias consideráveis em pouco tempo, no caso de alguma urgência.

Marc Ferrez. Negra da Bahia. Bahia, 1885 circa.Imagem: Acervo Instituto Moreira Salles

A chamada “Lei do Ventre Livre”, sancionada em 28 de setembro de 1871, legalizou o esforço costumeiro através do qual pessoas escravizadas apresentavam pecúlios aos seus senhores para a compra da liberdade – própria ou de terceiros. Antes dessa legislação, as quantias estavam mais vulneráveis às exigências habitualmente arbitrárias dos proprietários que poderiam modificar o acordo conforme as vantagens possíveis dentro de uma relação desigual de poder. A Lei de 28 de setembro, no entanto, procurou regulamentar esta negociação instituindo árbitros e juízes que influiriam na fixação do preço a ser pago pela alforria – não frustrando totalmente as imposições senhoriais. Foi através da regulamentação desse direito ao pecúlio, que essas mulheres negras tiveram alguma segurança em viabilizar suas próprias liberdades e as de seus entes queridos. Neste sentido, suas joias puderam ser usadas como um método valoroso na compra de alforrias.

Cidadania negra como joia

A liberdade era, portanto, o primeiro passo – um dos mais importantes – no longo caminho para a conquista da cidadania. Em inúmeros casos de abnegação, essas mulheres negras e suas joias libertaram muitos filhos, esposos, pais e mães do cativeiro. Essa “opulência” de pessoas negras no uso de colares, braceletes, relógios, anéis, broches e toda a sorte de adornos feitos com metais e pedras preciosas ainda permanecem entre nós. Mano Brown, Mc Poze, Ludmillah, e muitos outros artistas, destacadamente de ritmos negros, como o hip-hop, o rap e o funk, demonstram seus ricos adereços não só como símbolos de poder, mas, antes de tudo, como significados da vitória sobre as inúmeras dificuldades que um país racista os apresentou até a fama. 

*Itan Cruz para a coluna Presença Histórica da Uol

Compartilhar
plugins premium WordPress
Rolar para cima