Como as empresas mantêm vivos modelos que soavam obsoletos
Por André Sollitto
Era inevitável, questão de anos, meses, dias, horas, minutos ou segundos. Quando os smartphones vieram ao mundo, os relógios de pulso pareciam estar destinados ao limbo. Afinal, bastaria olhar para a tela dos aparelhos, que não apenas mostravam a hora com exatidão, mas realizavam diversas outras funções. Não foi o que aconteceu — e as notícias de morte dos clássicos objetos soaram exageradas.
Sobreviveram, até que se anunciou um segundo falecimento. Os smartwatches, os relógios inteligentes que mostram mensagens, contam os passos e podem até fazer um eletrocardiograma, representariam nova e definitiva derrocada de seus irmãos mais velhos. Não necessariamente, embora tenham se espalhado com velocidade. Há reação, e o pulso ainda pulsa, como diria Arnaldo Antunes.
A vanguarda da contrarrevolução é liderada pela fabricante japonesa Casio, fundada lá na pré-história, em 1946. Graças a modelos de design atemporal, sabe-se agora, e ao apelo crescente entre as gerações mais novas, a empresa ajudou a tornar o relógio uma forma de expressão de estilo, muito mais do que uma ferramenta para medir o tempo com precisão. Foi um passo inesperado e celebrado.
Os primeiros modelos, nos anos 1970, tinham caixa de resina, mostrador digital e algumas funções básicas, mas úteis, como alarme e cronômetro. “A Casio foi uma das primeiras marcas asiáticas a bagunçar o monopólio das fabricantes suíças, oferecendo equipamentos de boa qualidade e acessíveis”, diz Mariana Cerone, professora do hub de moda e luxo da ESPM. Em 1983, despontaria a linha G-Shock (veja no quadro), que se tornaria carro-chefe nas décadas seguintes. O lançamento de uma peça dita como indestrutível, forte e firme, inventou um caminho, ao abrir uma avenida então inexistente.
O engenheiro Kikuo Ibe já trabalhava para a Casio quando viu o relógio mecânico que havia recebido de presente do pai cair no chão e se espatifar. Decidiu, então, desenvolver um modelo capaz de aguentar uma queda de 10 metros, ter uma resistência à pressão da água de 100 metros de submersão e uma bateria que durasse dez anos. Foram duas centenas de protótipos até que Ibe teve a ideia de isolar o movimento do relógio, a peça principal, dentro de um sistema à prova de impactos. A ideia veio ao ver uma criança brincando com uma bola de borracha.
O primeiro G-Shock foi lançado há exatos quarenta anos, e desde então se tornou um fenômeno de vendas. Em 2017, a divisão de relógios ultrarresistentes bateu 100 milhões de vendas. estilo “parrudo” dos relógios G-Shock conquistou celebridades, como a empresária Kim Kardashian e o rapper Pharrell Williams, flagradas com os modelos japoneses no pulso, de modo ostensivo. “Apesar de serem ótimos produtos, os relógios inteligentes são limitados a um único formato”, disse Ibe a VEJA. “Com nossos relógios, há uma enorme variedade de cores e formatos. E as pessoas usam isso para mostrar ao mundo quem são.”
A longevidade ancorada no estilo se explica, em parte, pela nostalgia, uma necessidade humana, demasiadamente humana. Afinal, embora a Casio tenha lançado inúmeros modelos ao longo dos anos, há uma clara preferência do público pelas versões retrô. “As marcas entenderam que é possível usar a nostalgia para cativar o público que é economicamente ativo hoje”, diz Cerone. Quem foi jovem nos anos 1980, por exemplo, compra hoje reedições dos modelos clássicos de outrora. Olhar para o catálogo e relançar sucessos de outras épocas, portanto, virou estratégia — que muitas outras empresas, além da Casio, seguem regiamente. A americana Timex, conhecida por seus relógios acessíveis, também tem posto nas prateleiras alguns modelos antigos. Até mesmo marcas de alto luxo revisitam itens populares em anos anteriores com nova roupagem. E fica decretado que marcar horas é fundamental, mas não é tudo. Vale lembrar uma bonita frase do poeta gaúcho Mario Quintana (1906-1994), que sabia das coisas e das sutilezas das andanças da existência: “Amigos, não consultem os relógios quando um dia eu me for de vossas vidas… porque o tempo é uma invenção da morte: não o conhece a vida — a verdadeira — em que basta um momento de poesia para nos dar a eternidade inteira”.
Matéria publicada na revista VEJA, edição nº 2851