Apesar de inflação alta, incerteza do emprego e recessão iminente, consumidores afluentes ainda compram relógios Cartier, bolsas Chanel e paletós Dior
Por Angelina Rascouet, da Bloomberg
Em 11 de outubro, mesmo dia em que o Fundo Monetário Internacional (FMI) alertava para as nuvens escuras acumulando-se no horizonte econômico, a maior fabricante mundial de artigos de luxo anunciava uma força surpreendente nas vendas, sinal de que o apetite dos consumidores ricos por produtos de alto padrão estava longe de ser saciado. A Moët Hennessy Louis Vuitton SE (LVMH) conseguiu superar as estimativas dos analistas em quatro de suas cinco principais divisões. A maior e mais lucrativa, que inclui casas de moda como a Christian Dior, na qual um único vestido pode chegar a preços de arregalar os olhos, encabeçou o crescimento mais uma vez.
Em teleconferência com analistas, o diretor de finanças da LVMH, Jean-Jacques Guiony foi questionado sobre o “divórcio” entre o desempenho resiliente do setor de luxo e os fundamentos econômicos internacionais – juros em forte alta, inflação generalizada e recessão iminente. “O luxo não é um espelho da economia como um todo”, disse Guiony. “Acabamos vendendo para pessoas ricas e elas têm seu comportamento próprio, que não está necessariamente totalmente alinhado à economia”.
Em outras palavras, enquanto os supermercados veem os clientes passarem a economizar cada centavo quando a inflação mostra os dentes, a Louis Vuitton pode remarcar os preços para cima sem prejuízo imediato à demanda.
Na quinta-feira, 20, surgiram mais evidências da tendência, quando a Hermès International anunciou crescimento de 24% neste ano, excluindo variações cambiais. Isso, depois de a empresa ter elevado os preços em 4%, em média, o que a deixou confiante para anunciar aumentos de até 10% para 2023.
O enorme aumento da riqueza pelo mundo explica em parte a crescente demanda por bens de luxo. A riqueza financeira mundial cresceu 10,6% em 2021, o maior ritmo em mais de dez anos, de acordo com relatório de junho do Boston Consulting Group, o equivalente a US$ 26 trilhões adicionais em riqueza.
Outros fatores também tiveram influência, em especial, o abrandamento das restrições relacionadas à covid-19 na maioria dos países, após mais de dois anos de lockdowns, testes de detecção da doença e comprovantes de vacinação.
“Pós-covid, tem havido muito ‘consumo de vingança’, pois os consumidores dizem a si mesmos ‘sou mortal e a vida é curta”, diz Gachoucha Kretz, professor associado de marketing da escola de administração HEC Paris.
“É melhor aproveitar o hoje, já que não sei o que vai acontecer amanhã”. Basicamente, esse é o caso de muitos americanos ricos que têm viajado para a Europa neste ano. Com o dólar negociado a mais de 1 euro pela primeira vez em 20 anos, eles pareceram não se incomodar com as filas para comprar bolsas Chanel de 9 mil euros (US$ 8.850) na rue Cambon, em Paris. E alguns desses compradores mais ricos se hospedam no hotel Cheval Blanc Paris, da LVMH, – que pode cobrar 55 mil euros por noite pelo “apartamento”, nome dado à conjugação de suas duas principais suítes, que inclui elevador privativo e piscina.
O frenesi de gastos se estende ao mercado de segunda mão de bolsas de luxo, que são cada vez mais vistas como investimentos de longo prazo e atraem novos compradores, de acordo com Lucile Andreani, chefe da área de bolsas na Christie’s na Europa, Oriente Médio e África. Ela estima que quase 70% dos compradores de bolsas em leilão agora são mulheres, e que a idade média é de 43 anos, em comparação à de 54 anos nos demais departamentos da Christie’s.
Itens de luxo agora estão sendo vendidos por valores sem precedentes. Neste mês, por exemplo, uma bolsa Hermès Kelly foi vendida por 352,8 mil euros em leilão da Sotheby’s em Paris, um recorde para a casa de leilões do magnata das telecomunicações Patrick Drahi. (O recorde de todos os tempos, de 4 milhões de dólares de Hong Kong, equivalentes a US$ 510 mil, alcançado em novembro, ainda é da Christie’s.)
Desde 2007, a LVMH viu a receita orgânica diminuir em apenas dois anos: em 2009, logo após a crise financeira, e em 2020, quando a covid-19 atingiu o mundo. Em ambos os casos, nos anos seguintes houve fortes recuperações nas vendas.
Desta vez, a atual crise financeira pode ser um pouco diferente, de acordo com Federica Levato, sócia da Bain & Co., que projeta outro ano recorde para o luxo em 2022. “Ela está afetando mais a base da pirâmide dos consumidores, os mais pobres e a classe média, não os consumidores de luxo”, diz. “Não prevemos nenhum tropeço relevante nos próximos meses e no futuro próximo”, mas um abrandamento do crescimento das marcas voltadas aos realmente ricos.
Kretz, da HEC Paris, diz que as casas de luxo podem se mostrar ainda mais resilientes do que na crise financeira global de 2008, já que se tornaram mais internacionais e podem ter a desaceleração em alguns mercados geográficos sendo compensada por outros lugares em expansão. Além disso, os contínuos investimentos feitos pelas marcas para incrementar o poder de fascínio de seus produtos mais procurados estão mostrando resultados, diz.
“Há uma percepção de que alguns dos principais produtos são ativos semelhantes a propriedades”, que podem ser transferidos, segundo Kretz. “Quando são produtos atemporais, alguns clientes não têm problema em pagar o preço”. Um exemplo: em setembro, a Sotheby’s vendeu um raro relógio Cartier Cheich por 1 milhão de euros, em Paris.
Mesmo dentro do setor de luxo, há sinais de que alguns produtos são mais à prova de recessão do que outros. Os itens de ouro tornaram-se particularmente populares no atual momento inflacionário, o que pode explicar em parte por que a Tiffany & Co. (cuja linha de produtos de prata representa cerca de 25% de seus negócios, segundo o Citigroup) teve desaceleração no crescimento no terceiro trimestre.
Em comparação, a demanda por relógios tem se saído melhor, segundo Guiony, cuja empresa é dona da Bvlgari, que tem sede em Roma e fabrica os relógios Serpenti. “As pessoas receiam que os preços dos relógios possam subir”, diz, “e estão dispostas a comprar agora por medo de comprar depois a um preço mais alto.”